quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O Cristianismo no Frei Luís de Sousa (texto teórico)

Leitura religiosa: entre a angústia, a revolta e a esperança cristã

Nesta abordagem, enumeremos três ideias:


1. Diz respeito à angustiante consciência do pecado, manifestada desde a cena inaugural. Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. Não só teme dolorosamente o regresso do seu primeiro marido, como se sente uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério em pensamento). Depois do expressivo monólogo inicial, é o velho e ciumento escudeiro que a atormenta, quer quando conversa com Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2). Mais tarde, é a própria D. Madalena que, justamente na cena anterior à aparição do Romeiro, confessa ao cunhado Frei Jorge a razão da sua infelicidade, partilhando assim o conflito interior em que se debate, e que a sua consciência cristã se lhe encarrega de lembrar.

2. A desafiadora revolta protagonizada pela jovem Maria de Noronha nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela Igreja de S. Paulo, em plena celebração, quando os seus pais se preparam para ingressar na vida conventual. Não a prepararam para tão duro golpe, nem lhe perguntaram a sua opinião. Apenas a confrontaram com aquele violento abandono, quando já se ouve o som do órgão e os frades de S. Domingos vão entoando os salmos penitenciais. Totalmente desvairada, ela interrompendo a “santa cerimónia”. Tenta demover os pais de tão inumana resolução, quando eles iam morrendo para o mundo, abandonando o seu antigo estado e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes (Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena): “Esperai: aqui não morre ninguém sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
É neste contexto que, perante a inabalável resolução dos seus pais, surge a dolorosa invectiva de Maria de Noronha, num longo e patético monólogo, contra a falta de humanidade de um Deus justiceiro e vingador, que assim lhe rouba os seus legítimos pais: “Que Deus é esse que está nesse altar e quer roubar o pai e a mãe a sua filha? (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros fatais?... Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu pai. Que me importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos, sobretudo a indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem crua e desumanamente as razões do coração e o fruto de uma união apaixonada (plano humano).

3. A resolução do casal (solução religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D. Madalena. Acolhendo resignadamente os insondáveis desígnios de Deus, os dois decidem entregar-se à sua omnipotente e divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes de Vimioso, o marido é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do drama familiar em que se vê mergulhado com a sua esposa reside na “sepultura de um claustro”.
O mesmo sentimento de aguda revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai. Com efeito, no início do derradeiro Acto, aparece-nos um Manuel de Sousa profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado apenas por um doloroso sentimento: a perdição de sua filha no “abismo da vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte do irmão, Frei Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III, 1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio pecado. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de dor perante a anagnorisis incompleta (II, 13).
Depois da interrupção da cerimónia religiosa por Maria, a peça termina justamente com um sentimento misto de resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homem confia plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela alma daquele anjo inocente que acaba de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no Céu” (III, 12). Ao pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da relação matrimonial, impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a desejada ordem moral – ao crime sucede a expiação, através da Cruz redentora. Consuma-se, deste modo, a anunciada catástrofe do “duplo e tremendo suicídio” (Memória): suicídio moral dos esposos e morte física da vítima filha.


P.S.: Sublinhados meus.

(Excertos e adaptação de: "Para uma sistematização didáctica das leituras interpretativas do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett" , J. Cândido Martins.)

In: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf

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