domingo, 16 de novembro de 2008

José Saramago: no dia do seu aniversário


ESTE MUNDO DE INJUSTIÇA GLOBALIZADA

(...)

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é.
(…)
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo. (…)

(Sublinhados meus)

Excerto de um texto lido na cerimónia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002

In http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000302.pdf
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2 comentários:

Anónimo disse...

Li Saramago. Reli os sublinhados.Excelente selecção. Como o tempo para as actividades verdadeiramente importantes é cada vez mais escasso, quase só espreitei as outras páginas. Oxalá possa voltar em breve para, também eu, fruir destes ensinamentos.
Embora aprecie muito mais a prosa de Saramago, deixo-te/vos um seu poema:

Aprendamos o rito

Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes :
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

José Saramago

(*_*)

bj-e

MC disse...

Que lindo poema!! Não o conhecia!! e, mais uma vez, grata pelas palavras de estímulo!!

(Quase) perdemos o tempo para os ritos!! muito problemáticas as sociedades que os "esquecem"...uma sociedade sem ritos entra em decadência!! esquece a sua identidade!! será que não sabem disso???

Um beijo

MC